quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Naturalidade Artística no violoncelo por Nicholas Anderson(tradução de Pepê da Mata Machado)

 texto em português por MachadoMata -  primeira versão 15/04/2010 

  Fui um afortunado em poder estudar e trabalhar em profundidade com a eminente violoncelista pedagoga Margaret Rowell. Como parte em meu duplo treinamento como violoncelista profissional e como professor, eu estive associado a ela por 24 anos, até sua morte em 1995. Aos meus 19 anos, eu já era um violoncelista avançado, e fui aceito na faculdade Juilliard School; mas estava também familiarizado com o trabalho de Margareth, e escolhi, ao invés, ir para Berkeley, na Califórnia, para ter acesso à sua Escola. Através de seu trabalho, eu obtive um profundo e genuíno aprendizado original sobre a atividade de tocar o cello. Meus anos ao seu lado foram enormemente produtivos, e, como resultado, agora que estou sediado em Nova Iorque, uma de minhas atividades é ir a vários lugares e realizar seminários para compartilhar a minha versão das suas idéias com outros celistas.


Como se captura uma sensação física?

  Neste artigo, eu gostaria de passar um pouco a noção de como são os meus seminários e que tipo de métodos você vai encontrar neles – até onde é possível num ensaio como este. Não será como se estivéssemos em pessoa, e você tivesse a chance de me perguntar até ter a clareza exata do que eu estou querendo dizer, e eu pudesse ver se você está fazendo realmente da maneira como eu demonstro. Assim, este será apenas um “tira-gosto”, até pelo fato do seminário ser agendado para um fim-de-semana inteiro ou mais. Mesmo assim, eu espero que a partir daqui você também possa perceber que Margaret encontrou eficazes e inovadoras abordagens para velhas e difíceis questões no cello, e também que, ao abrir algumas portas que estiveram fechadas para todos nós até agora, uma nova inspiração surgiu em sua vida.


Essencial background/ formação básica


  Nascida em 1900, Margaret foi ela própria uma “criança prodígio” no violoncelo, desenvolvendo-se naquilo que se poderia chamar de aptidão natural com relativamente pouca ajuda de professores. Pelos seus 20 anos de idade era uma concertista reconhecida, participando num trio com presença frequente na radio NBC. Porém, bem no meio da carreira, contraiu tuberculose e foi hospitalizada por 3 anos sem a possibilidade de sequer encostar num cello durante esse período. Ao voltar para sua atividade como instrumentista no cello, ela obviamente lembrava a técnica e musicalidade, mas sentiu que havia perdido a conexão física espontânea e fácil e a expressividade, que sempre teve como garantidas no cello – e que era também aquilo que fazia dela uma artista, ao invés de simplesmente uma excelente instrumentista. Ela então, procurou todos os cellistas e professores que ela pode encontrar, para perguntar-lhes como poderia obter de volta especificamente aquela sensação no instrumento, mas eis que neste quesito, ninguém podia lhe ajudar. Assim, ela desenvolveu sua própria metodologia pessoal, e mesmo sendo uma sofrida e difícil busca, a sua criatividade e brilhantismo finalmente levaram-na a maestria naqueles quesitos. Agora, pela primeira vez ela sabia não só como adquirir habilidade para si mesma (ao invés de simplesmente tê-la inconscientemente), mas também, e como conseqüência desta consciência, sabia como disponibilizá-la a outros celistas. Ela encontrara a "fonte", de modo que aqueles que não nasceram  com esta intuição necessária também poderiam  atingi-la, e aqueles dotados com tal intuição poderiam ir mais longe, ou seja, fazer de propósito ao invés de apenas fazer por acaso. O fato desse conhecimento específico não estar presente ao estado da arte das metodologias de ensino, até mesmo entre os melhores professores, torna a contribuição de Margaret da maior relevância. Até mesmo nos casos de alguns professores que perseguiram a matéria, Margaret trouxe novo aprofundamento e entendimento sobre o tópico para todos, devido à combinação de sua inusitada circunstância e sua percepção.


  Um importante elemento em sua pesquisa foi investigar os modos de tocar de grandes celistas, buscando encontrar de que maneira o elemento de naturalidade funciona para eles, e descobrir o que ocorre quando as coisas estão indo bem, ou seja, corretamente. Ela investiu bastante tempo escutando e observando-os em concertos, bem como procurando-os e questionando, extensivamente, sempre tentando “ler nas entrelinhas” afim de encontrar o que apoiava de fato, no modo de tocar de cada um, aquilo que diziam. Esta atividade levou-a a ter contato com Casals, Piatigorsky, Rostropovich, Fournier, Rose, Nelsova, Ma, e muitos outros, vindo ela a se tornar amiga pessoal deles. Ela chegou mesmo ao feito de perceber um sem número de coisas que artistas como estes têm em comum em seu modo de tocar, coisas que são essencialmente instintivas demais para que eles próprios pudessem mencionar. Coisas que poderiam se chamar os “princípios básicos”, no que se refere ao ato físico de tocar, e à relação entre o corpo e o cello. Ao trabalhar juntos, esses princípios produzem uma determinada “sensação do cello”, que não é nem técnica propriamente dita, e nem de interpretação, vindo a se assemelhar mais a as fundações que permitem a técnica e a interpretação funcionar bem – em qualquer nível, tanto para um lapidado artista, como para um estudante iniciante como qualquer um em algum estágio entre estes dois. Esses princípios tem haver com sensações físicas, que devem primeiro ser capturadas, e depois incorporadas no tocar de cada um.


  Um dos grandes desafios em compreender estes “princípios básicos” é que tentar realizar ou produzir uma sensação física é muito diferente de tentar apreender um conceito. O mundo em que vivemos é muito bom em saber como se apreende conceitos como fatos ou informações – mas muito menos aprimorado naquilo que se refere ao que o corpo sente por dentro, e em como atingir essassensações.  Por exemplo, técnica violoncelística, como este termo é normalmente compreendido, reside mais na categoria de um conceito, um caminho em linha reta para prosseguir, e que pode ser abordado através de descrição verbal. Mas eu aqui me refiro às sensações corpóreas que ficam abaixo da técnica – e que devem estar lá para que a técnica possa se desenvolver. Essas sensações podem ser capturadas, mas requerem um diferente tipo de pensamento, devido ao fato de que elas não operam do mesmo modo que os conceitos mentais, e não obedecem às mesmas leis.


  Aqui vai uma simples maneira de ver a diferença entre como apreender um conceito e como capturar uma sensação física. Para apreender um conceito, é muito apropriado tentar achar sempre a resposta correta. A coisa resume-se a basicamente tentar encontrar pedaços de informação e representá-la de modo correto. Mas no mundo das sensações físicas, respostas não ajudam. Neste tipo de busca pelo caminho das sensações internas, assim que você pensa que encontrou a resposta sobre como atingi-las, a sensação propriamente dita escorrega para longe, muitas vezes sem aviso e sem que se note – deixando você mais cedo ou mais tarde se perguntando onde a sensação foi e como obtê-la de volta. Sensações corpóreas são como as emoções, não respondem bem ao pensamento racional. Na verdade, respostas corretas, não importa o quão lógicas elas possam parecer, tendem a trabalhar contra o avizinhar-se para capturar uma sensação física. O que nos dá algum acesso às sensações físicas é fazer perguntas, mas fazê-las de um modo particular. Trata-se de fazer uma pergunta, mas não para buscar a resposta correta, e sim para nos deixar no estado em que ficamos ao fazermos uma pergunta, visando aquilo que retemos ao nos colocarmos nesse processo. Fazer uma pergunta sem se fixar na resposta, estranho que possa parecer, coloca a pessoa neste estado particular de absorção que permite que uma sensação física possa emergir à superfície e revelar a sua presença. Mas o capcioso nisso é que no momento em que tornamos isto uma resposta (pois fazemos isto o tempo todo, como um “vício cultural”), a sensação começa a desaparecer feito uma miragem; isto se dá porque ela já não mais é uma sensação, vindo a se tornar um conceito, e assim nada mais que uma memória daquilo que foi sentido, o que é criticamente diferente da sensação ela mesma. Então, o inusitado modo de pensar de que se necessita para esta tarefa é aprender a como fazer perguntas sem se preocupar em obter respostas. É simples, mas é também mais simples quando se fala do que quando se faz. Trata-se de uma habilidade que não “aprendemos na escola”, e que deve ser cultivada através do tempo. Apesar de tudo,  realmente funciona, sendo uma significativa parte daquilo em que Margaret foi pioneira, na sua nova abordagem. Eu vou agora dar-lhes um pequeno, rudimentar exemplo de como isto tudo pode ser feito. Digamos que eu vá até você e, com as minhas mãos eu mova o seu braço direito (braço do arco), demonstrando um determinado tipo de sensação e flexibilidade nas juntas – ombros, cotovelos, pulso e as juntas dos dedos – após o que, seu braço sente-se mais confortável, e o seu som sai com uma qualidade mais livre , obtendo mais e melhor som com menos esforço. Num certo sentido, isto resultou de um meu questionamento sobre o que o seu braço está fazendo. O modo de seguir adiante, não é pensar nessas novas sensações como algo que é o certo – mas, ao invés, perguntar a você mesmo dezenas de questões, e não levar nenhuma das eventuais respostas muito a sério. Assim, você poderia perguntar a você mesmo, durante o movimento dos braços, “qual é a sensação no braço neste momento?” , e tomar nota do que surgir pela mente, mas então largar esse pensamento e refazer a pergunta, para o novo momento, - que será certamente diferente. Sensações físicas são assim – elas não possuem a continuidade mental dos conceitos. Se você se fizer a pergunta pela manhã, a resposta pode ser uma e vir a ser diferente daquela ao perguntar à tarde ou no dia seguinte. E mesmo que a sua resposta lhe ofereça alguma luz no momento em que você a encontra, ela já não mais se aplicará, se você continuar fazendo a pergunta. Então, você poderia perguntar, “o que meu braço sente se eu o movimento desta maneira?”, e depois, “o que meu braço sente se eu o movimento daquela maneira?”, e experimentar diferentes variações, do movimento do braço e das perguntas. Não é que você não deve desejar obter algo das respostas; com suficientemente diferentes respostas, nós gradualmente começamos a aprender coisas sobre como produzir sensações. O fato é que respostas são muito menos importantes do que o fato de que você continua perguntando. Este tipo de sensação física apenas existe no momento em que é criada ou gerada; diferentemente de um conceito, ela não se mantém de um momento para outro, como algo que você pode obter e guardar. Mas ela pode sempre ser produzida, desde o princípio, fresca no novo momento – e o modo de fazer isto é continuar perguntando, como produzindo ganchos que puxam de volta as coisas.


  Então, o que eu vou dizer é que eu não posso dar nenhuma resposta, mas posso oferecer um modo poderoso de fazer perguntas . Os “princípios básicos” de que estou falando, na verdade “se comportam” mais como perguntas do que como respostas a qualquer coisa; assim, eu peço que você pense neles desse jeito. Eles podem parecer porções de informação, mas, na verdade, são processos mentais, que produzem sensações físicas e momentos de espontâneas intuições e introspecções. Eu gosto de pensar neles como “princípios geradores”, já que não são informação, mas são algo que gera informação. A distinção é crítica: se você conseguir abordar esses “princípios básicos” como ferramentas para exploração e investigação, ao invés de algo para ser atingido ou alcançado, eles podem então dar acesso a certas sensações físicas reais, que abrem novos domínios na habilidade com o cello.


Duas armadilhas a evitar


  Baseado no que acabo de dizer até agora, existem duas “armadilhas” nas quais se deve evitar cair ao ler este artigo. Assim, gostaria de precavê-los para evitar ter qualquer uma dessas duas reações ou atitudes, ao abordar este material. Digo o porquê após te-las apresentado. As duas reações contra-producentes são: 1) “Eu não concordo com  isto” , e 2) “eu já sei isto”.


  Para a primeira delas, o que se deve ter em mente é que, como já sugeri anteriormente, não há nada nesse material que seja uma resposta, ou algo que possa ser correto – sendo assim eu não espero que você concorde. O que eu peço unicamente é que “faça como uma pergunta” – tente observar de uma determinada perspectiva, como um lugar de onde partir o pensamento – para experimentar desta perspectiva, seriamente, e observar o que ocorre com a atividade de tocar o cello nesse contexto. De certo modo, concordar é tão ruim com discordar – não é sobre isso de que se trata. As sensações físicas em questão não são geradas a partir de um debate sobre quem está certo ou errado.


  Quanto a já saber isto – a frase traz de volta o mesmo tipo de questão. A relação entre o corpo e o cello precisa ser percebida espontaneamente e a cada novo momento; não é como uma coisa que pode ser sabida anteriormente, como um conceito – e depositada em um compartimento. Como mencionei, eu estou falando sobre “um lugar de onde partir o pensamento”, não um fato ou uma conclusão. Não se pode ‘já saber’ um lugar de onde partir o pensamento, porque isto não é uma porção de conhecimento – e tudo aquilo que se pode saber ou não saber, são porções do conhecimento. O modo de abordar este material é tentar pensar a partir dele, e ver o que acontece. E se algo disso parecer familiar, trate como uma outra forma de se conhecer, de uma perspectiva que traga frescor. Senão você estará roubando de você mesmo tudo aquilo que se pode obter com o material que segue.


Conectando a mente e o corpo do violoncelista


  Quando falamos sobre tocar o cello de uma maneira fisicamente natural, geralmente nos referimos a algo que deveria ser fácil e relaxado, ou, pelo menos, livre de rigidez e tensão. Olhando mais de perto, percebemos no entanto que não é uma questão de “estar relaxado” em si mesmo, mas de como a energia se distribui pelo corpo. Estar meramente “relaxado” poderia significar uma falta da paixão e excitação que a música demanda; e além disso é necessário sim algum tipo de força e potência para tocar o instrumento. Mas qual é o exato tipo de força e potência necessária? E como nós podemos atingir estas qualidades sem ficarmos rígidos, tensos ou desconfortáveis?


  Deixe-me colocar uma questão maior por um ângulo diferente. Ao observar um cellista tocar artisticamente, existe uma sensação de liberdade diferente nos vários movimentos envolvidos; nada está estrangulado ou forçado. Mas o que é exatamente mover de uma maneira livre? Por exemplo, com o arco – nós podemos falar sobre o arco indo mais depressa ou lentamente, mas a qualquer velocidade dada, o que é que queremos dizer com mover mais livremente? O que é um movimento livre, especificamente, e como atingi-lo? Este é o tipo de assunto no qual nós precisamos de uma iluminação. Quando você estiver chegando no final deste artigo, você estará começando a ter uma noção de que tipo de liberdade é esta.
Como ponto de partida, vou utilizar uma analogia com caminhar. Está correto dizer que a maioria das pessoas que andam o fazem de uma maneira natural; assim como está correto afirmar que a maioria das pessoas que tocam o cello o fazem de uma maneiera não tão natural quanto quando andam. Se pudéssemos encontrar o que é que fazemos ao andar que faz desse ato um movimento “natural”, e aplicar de maneira correlata ao ato de tocar o cello, este seria um exemplo de uma iluminação sobre o que um grande artista do cello faz, naturalmente ao nível do subconsciente, do ponto de vista físico. Esta seria então uma parte da construção de um elo de ligação entre a mente e o corpo – ao invés de termos ambos e cada um trabalhando bem mas em mundos distintos.


  Se nós vamos tentar encontrar semelhanças entre o andar e o tocar o cello, um modo de enquadrar o assunto seria em termos de como utilizarmos o braço no cello da maneira como utilizamos a perna ao caminhar. Uma coisa certa é que quando caminhamos, nós não mantemos o tornozelo rígido, e tentamos pressionar sobre o chão o pé a partir da ponta e dos dedos. Ao dar um passo adiante, o calcanhar vem em primeiro, e somente aí nós jogamos o peso do corpo sobre a frente do pé, com o tornozelo flexível, enquanto o outro pé desenha um círculo para cima e para adiante, para receber a sua carga através do calcanhar.


  Assim como o pé tem o seu calcanhar, a mão também o tem - é a base da palma, próximo ao pulso. A junção do pulso é o correlato ao tornozelo. Assim, a partir da observação anterior sobre como o tornozelo funciona em nossos pés ao caminharmos, vamos imaginar como o “tornozelo da mão” faria ao tentarmos desempenhar o funcionamento da mão do arco com aquela naturalidade da perna ao caminharmos. Se eu estivesse mostrando a você, eu pediria que você realizasse um arco inteiro para baixo, e que, ao fazê-lo tentasse entrar com a mão pelo seu “calcanhar”, com o pulso flexível. Eu pediria que você tentasse utilizar o calcanhar ou base da mão como um ponto de foco, e obter assim a sensação do peso afundando sobre esse calcanhar, com o pulso flexionando para trás, e mantendo os dedos da mão e o polegar no arco bastante relaxados, quase como se eles fossem feitos de borracha. Tudo isto também iria envolver a checagem do relaxamento do cotovelo e seus ligamentos assim como da elasticidade do ombro, assim como o são o joelho e a ligação com o quadril, respectivamente, ao caminhar.


   Se você conseguir isto, ou se eu estivesse em pessoa para lhe mostrar, você iria perceber que esta maneira de passar o arco resulta num som bem “na corda”, e ainda assim sem forçar. Violoncelistas querem um som que não seja “superficial” no sentido de estar somente pegando a superfície do som da corda – e ao mesmo tempo que não force, pressione ou emperre a corda. Ao ter a sensação de afundar na corda pela base da mão com um pulso flexível, o arco estará entrando na corda profundamente, mas sem “beliscar” o som.


  Favor observar cuidadosamente: não estou dizendo que você deve tocar com um pulso baixo, ou com um pulso reto, ou que deva o calcanhar ficar embaixo – não mais do que você gostaria/precisa que o calcanhar fique baixo ao caminhar. O que eu estou dizendo é que nós devemos abrir algumas possibilidades que trarão resultados positivos ao manter um certo tipo de ação elástica na flexibilidade do pulso, com o objetivo de poder afundar pelo pulso quando você desejar um som mais profundo ou amplo, ou então não afundar ou afundar menos quando quiser um som mais suave ou leve. Um modo de compreender isto é pensar nas dinâmicas como se fossem cores – assim um forte, ou poderia dizer-se “vermelho intenso”, seria produzido afundando mais através do pulso, enquanto que para um piano, ou “rosa-bebê”, você deixaria o pulso vir um pouco para cima. Obviamente, este é um de muitos aspectos da dinâmica e da entonação, ou produção do som, que eu estou descrevendo aqui em termos ultra simplificados – mas este item em particular é um elo perdido no conhecimento do cello, e tem implicações de longo alcance.


  Agora, se você observar a maneira de tocar de diversos violoncelistas, você perceberá que este tipo de flexibilidade no pulso direito e uso da base da mão está fundamentalmente presente nos grandes artistas, mesmo que eles jamais venham a falar disso dessa maneira – e está pelo contrário muito menos presente naqueles cellistas que parecem simplesmente não ter tanto “talento”, e cujos pulsos estão sempre perceptivelmente mais rígidos. Esta constatação suscita a questão do porquê de um cellista vir a desenvolver qualquer rigidez no pulso em primeiro lugar. Para jogar luz sobre esta questão, devemos atentar para o assunto de como produzimos a força física necessária para tocar.


  Retomemos por um instante o calcanhar ou base da mão, e eu gostaria que você fizesse o seguinte: sentado na cadeira, faça com que a base da mão direita dê umas pancadinhas sobre a sua coxa direita, logo acima do joelho – e faça de um modo que ela possa quicar, como se você jogasse o calcanhar da mão para baixo e para frente, e que ele ricocheteasse na perna e de volta ao ar, e o braço fosse para frente de novo num movimento circular. Para fazer isto do jeito que eu estou dizendo, tanto as juntas do pulso como as do cotovelo e ombros precisam estar bastante libertas e relaxadas. Se você fizer isto, perceberá a força considerável que pode vir da base da mão. Se você fizer forte o bastante poderá mesmo sentir bater no osso da coxa! E ainda assim não haverá nenhuma junta tensionada ou rígida em nenhum ponto em todo o braço. Esta é uma idéia similar à de bater o pé no chão, que, de tanta força você pode fazer vibrar as paredes da casa – o que você sempre faria através da base do pé, o calcanhar, com juntas flexíveis por toda a perna – e jamais pela ponta do pé ou pelos dedos, mantendo um tornozelo tenso pra frente, o que resultaria em muito menos potência.


  A única razão pela qual um violoncelista teria um pulso direito rígido seria se ele pensasse que assim ele poderia obter a força necessária sobre a corda. Mas, como vemos aqui, por analogia com a perna, é possível produzir muito mais potência e força com um pulso flexível (e dedos adaptáveis e flexíveis) utilizando a base da mão, do que com um pulso rígido, travado, e com uma tentativa de ter “dedos fortes”. Assim abre-se toda uma área para reflexão sobre a questão de como tocar sem rigidez ou estrangulamentos. É toda uma idéia de que uma grande parte da tensão e rigidez vem de tentar obter força das fontes erradas.


  Somando-se a questão de como obter energia das fontes certas, outra questão é, como já mencionei mais cedo, como a energia se distribui através do corpo. A questão tanto é saber de onde vem a potência como por onde ela flui (no caso, a base da mão, de uma maneira não bloqueada). Assim, ao continuar esta linha de raciocínio, vamos retomar a analogia com a caminhada – e de novo, visando re-conectar a mente com o corpo. Quando se está de pé e se dá um passo a frente, com a sua perna atuando a partir daquele calcanhar, de onde vem a energia para mover a perna? Qual é a fonte de força para o movimento da perna?
Se você experimentar caminhando, verá que para dar um passo, a sua perna não vai pra frente em primeiro. Você não fica parado em pé e põe uma perna pra frente, colocando-a de novo no chão enquanto puxa o seu corpo para frente. Diferentemente disto, o que faz você se mover é o seu tronco, através do movimento iniciado pela base da coluna, que é exatamente onde se localiza o centro gravitacional do corpo. Obviamente, as pernas tem envolvimento, mas apenas no sentido de que uma perna precisa sutilmente “desprender você por debaixo”, para que com isto o seu torso possa se mover para frente, enquanto a outra perna se “joga para frente” ao encontro deste movimento. Assim, mesmo que as pernas estejam em movimento, os seus músculos e nervos estão agindo coordenadamente com a base da coluna, que vem a ser a fonte que inicia o movimento, e ao mesmo tempo fornece a força para isto. Somente assim é que uma pessoa consegue caminhar por quilômetros sem que suas pernas fiquem cansadas – porque o músculo da perna não é a fonte. Isto também faz com que o caminhar se torne fácil e suave, ao invés de um esforço. E se é assim tão natural caminhar, nós podemos começar a ver como aplicar essa mesma idéia para tocar o cello.


  Tente sentar, com o cello posicionado para tocar, mas sem o arco, e coloque os seus braços envolta do cello, num “abraço de urso”. Agora jogue de um lado para o outro várias vezes sobre ossos dos quadris, tendo também  as pernas envolvendo o cello e se movendo com ele, e mantendo a espinha dorsal num só movimento (não só movendo da cintura para cima, mas em todo o corpo também da cadeira para baixo). Este movimento de um lado a outro pode ser usado como a fonte do movimento para o braço do arco, assim como a base da coluna é utilizada para mover as pernas para frente ao caminharmos. Agora pegue o arco e movimente-o na mesma direção da coluna. Realize um arco para baixo a partir do movimento de inclinar o corpo inteiro para a direita; então mude a direção do arco suavemente pelo centro das costas e comece e continue o arco para cima através da inclinação do corpo inteiro para a esquerda. O braço segue as costas, na mesma direção. Se você faz isto, você permite ao braço estar muito mais relaxado, porque na verdade as costas estão fazendo uma boa parte do trabalho. Este relaxamento do braço libera o som e ele se torna muito mais ressoante, estimulando a vibração da corda ao invés de pressioná-la para baixo, o que na verdade inibe a sua atuação. Sinta o quão livre e fácil o trabalho do braço se torna, quando este já não precisa dar tanto duro, já que está se movendo primeiramente através do movimento iniciado pelas costas, não por esforço dos seus próprios músculos. O braço sente quase como se estivesse flutuando. Então, enquanto você se inclina para a direita no arco para baixo, se por exemplo, você deseja mais força para obter um som mais profundo, tente apoiar mais na base da mão, através das costas, afundando suavemente na corda, flexionando o pulso para baixo, e com a adaptação necessária do pulso e dos dedos. Você pode não apenas sentir de onde vem a energia (das costas), como também por onde ela flui (pela base da mão), ao saber de fato como utilizar o braço como uma perna. E se as juntas do cotovelo e ombro estiverem livres para se mover facilmente, esse fluxo de energia a partir das costas não será bloqueado, mas sim canalizado através do corpo, de dentro para fora, sem interferência.


  Não é dizer que é necessário mover as costas por uma extensão específica enquanto tocamos; estas demonstrações apenas permitem que você sinta mais enfaticamente a fonte do poder. Ironicamente, alguém poderia dizer que desde que você possa se mover, você não tem que; o principal é não ficar sentado numa posição travada e rígida. Por outro lado uma variável quantidade desse movimento das costas é claramente perceptível nos artistas ao tocarem. Margaret costumava ir a concertos de violoncelistas famosos, e se sentar onde ela pudesse observá-los por ângulos, particularmente pelas laterais extremas nas primeiras fileiras, tanto de um lado como do outro da sala de concerto. Esta foi uma das maneiras pelas quais ela pode detectar o uso coordenado dos braços desde as costas, o que pôde ser visto naquele pequeno movimento do centro do corpo, que os braços seguiam, na mesma direção – um tipo de movimento que engendra também as pernas, indo até as plantas dos pés.


Conectando a fonte da energia


  A partir do que observamos até aqui, uma imagem interessante começa a se formar. Se utilizamos o centro de gravidade, localizado na base da coluna, para gerar os movimentos naturais do corpo, então podemos dizer que as costas são a fonte de energia para o funcionamento dos braços. Esta fonte de energia localizada nas costas permite braços muito mais facilmente relaxados e livres do que se você tentar utilizar os próprios músculos do braço para prover a força para os mesmos. Os músculos do braço logo se cansam, e são uma limitada fonte de energia, no melhor dos casos; enquanto que as costas são uma infindável fonte de energia, e utilizá-la permite ao braço liberar a carga de tensão. E se os braços não estão travados, eles podem ser o caminho por onde a energia flui, de dentro para fora  - do centro do corpo, através dos braços desbloqueados, para o cello e finalmente até os ouvintes. Se, por outro lado, os braços estiverem trabalhando pesado com seus músculos, a tensão gerada resultará num bloqueio da força, cortando a circulação da energia, como um curto-circuito, o que restringe a fluência da comunicação musical. É necessário assim, um certo tipo de “re-cabeamento” simples, no qual as mãos e braços não estão tentando ser sua própria fonte de energia (como uma pequena e inadequada bateria), mas  conectam-se a uma verdadeira “usina de força”, muito maior localizada nas costas. Ao se conectar com a verdadeira fonte da energia, que provê uma oferta superabundante, é possível se livrar de uma vez com um monte de tensão, esforço desnecessário e travação.


  Uma boa maneira de visualizar isto tudo é que as costas são o reservatório, os braços as quedas d’água, e as pontas dos dedos são os pontos de energia elétrica na sua casa – que são em última instância ligados até a grande fonte de energia nas costas. Margaret sempre dizia que “nós não tocamos com , nós tocamos através de nossos braços” – e também que o corpo inteiro realmente toca o cello, não apenas os braços. Há também outra maneira pela qual as costas são a fonte de força para os braços: os músculos que movem os braços são músculos da parte superior das costas. Os músculos do braço não movem realmente os braços. Nós apenas pensamos que eles o fazem; anatomicamente! Isto não é uma opção. Na verdade, qualquer tentativa de mover os braços utilizando seus próprios músculos só ocasionará um aumento da tensão muscular enquanto que estes não podem de fato ajudar em nada no movimento. Se você simplesmente deixar o seus bíceps relaxado, os músculos das costas irão mover os seus braços para você – que é a maneira pela qual os braços se movem mesmo. Você não sente na verdade os músculos das costas fazendo nada, pois o esforço é tão mínimo para estes; você percebe apenas que os braços se movem enquanto o bíceps não o está movendo, mas está livre e relaxado. Tente e verá – as costas são a fonte de força para os braços. Esta fonte tem dois aspectos – o centro de gravidade (base da coluna), e músculos (parte superior).Agora tente o seguinte. Enquanto realiza arcadas longas, para baixo e para cima, sentindo que as costas na verdade movem todo o conjunto do braço do arco (ao se moverem elas também na mesma direção), repare o que ocorre com a sua mão direita. É a mão que move o arco, ou o braço que o faz? Faça como se sua mão estivesse movendo o arco e veja como a mão se sente. Então faça as mesmas arcadas longas, mas desta vez a idéia é tentar perceber o braço movendo o arco – ao invés da mão; a mão vai apenas “de carona”. Uma boa maneira de sentir isto é tentar estar consciente do impulso “horizontal” do braço, partindo da “lateral de seu pulso”, no lugar onde se amarra o relógio de pulso – um impulso a partir do lado direito do pulso nos arcos para baixo, e do lado esquerdo nos arcos para cima. (Este impulso na verdade parte da base da coluna, e navega até o lado do pulso para onde aponta o movimento no caso – através dos bíceps relaxados, e juntas livres nos ombros e cotovelos). Quando você sentir que o braço está movendo o arco, repare o efeito que este movimento tem sobre a mão, assim como a sonoridade. Se a mão não está tentando mover o aro, ela entãoestá livre para fazer outra coisa, o que é criticamente importante.
Esta investigação leva a algumas descobertas sobre o papel da mão, e os papéis relativos de cada uma dessas partes do corpo. Por uma razão: a mão não pode mover o arco por si mesma (exceto por dois ou três centímetros); para os arcos longos, o braço tem que estar atuando, potenciado pelas costas. Então, nós não podemos ter a mão para mover o arco, porém nós podemos pensar que sim –  nós podemos tocar como se a mão o estivesse  movendo. Isto ocorre por uma ilusão de ótica simples. Nós vemos o arco movendo, e vemos que a mão está sobre ele. A partir desta imagem visual, a mente soma 2e 2 e chega a 5 – o cérebro interpreta como se a mão estivesse movendo o arco – e a mão age então conforme, pensando que tem um trabalho a fazer, e apertando de modo a fazer o esforço. Tudo o que é preciso para mudar isto é sentir que o braço está movendo o arco, o que de toda forma é tudo o que está ocorrendo. Se você simplesmente permitir que o braço mova o arco, o que ele na verdade está fazendo, a mão está subitamente mais relaxada – pois ela já não está tentando realizar o trabalho das costas. Esta “libertação” começa ao desmascarar uma mera ilusão de ótica acerca das fontes da energia. E o que é uma ilusão de ótica a não ser uma desconexão entre a mente e o corpo – na qual os olhos (sendo partes do corpo) percebem uma coisa, e a mente mal-interpreta como sendo outra?


  Agora, com a mão não mais tentando realizar o trabalho do braço, ela está livre para realizar o seu próprio. E qual seria esse trabalho? Os dedos da mão direita são os responsáveis pela qualidade do contato entre o arco e a corda. Quando os dedos estão individualmente libertos para influenciar o arco através de um vasto leque de súbitas manipulações, estes dedos então produzem todas as cores, sombras e nuances de tom que fazem artístico um som de cello. Com isto alcançamos o cerne daquilo que eu quero dizer com tocar artisticamente. Se a mão está ligeiramente comprimida, ou apertando por estar tentando fazer o trabalho do braço, ela então só se torna capaz de realizar uma paleta monocromática de tonalidade. E onde a arte se presentifica é em ter uma variedade infinita de cores, valores e intensidades a nossa disposição, livremente. Isto somente é possível quando os dedos estão disponíveis para serem usados nessas nuances qualitativas, ao invés de presos a tentar ser uma fonte de força motriz, que é para o que as costas e braço são, respectivamente. Quando os dedos estão livres para interagir com o arco de maneiras súbitas, as cores e nuances são liberadas no som espontaneamente, sem que se deva tentar, ou mesmo estar alerta para isto. Assim é que os grandes artistas o fazem inconscientemente – isto acontece automaticamente quando os dedos estão libertos para fazê-lo, e pode ocorrer sem que se saiba. Ainda assim, tem-se a sensação de se ser capaz de criar os efeitos que se está buscando – assim, quando você quiser produzir um efeito emotivo em particular, ou o desenho de uma frase através de um sombreamento da entonação, você tem os meios de fazê-lo. Existe um grande sentimento de liberdade expessiva, bem como de naturalidade fácil.


  Aqui vai uma maneira de sentir mais especificamente tudo isto. Vamos imaginar que o comprimento do arco está dividido em quatro partes iguais – uma para cada dedo. À medida que o arco se move pela corda, cada dedo à sua vez irá exercer uma pequena força no arco, como se o estivesse gentilmente trazendo mais para a corda – e depois suavemente ceder à medida que o próximo dedo inicia. Para o movimento de um arco inteiro para baixo, o quarto dedo, ou o mínimo, é responsável pelo primeiro quarto, mais perto do talão. O terceiro dedo toma conta da porção seguinte; o segundo dedo toma conta a partir do meio do arco, e finalmente o indicador é o responsável pelo último quarto do arco, mais próximo da ponta. Para o arco para cima dá-se o mesmo ao reverso.  Assim, os dedos utilizados desta maneira no arco são 4-3-2-1 para o arco para baixo, e 1-2-3-4 no arco para cima. Podemos dizer que o arco para baixo a partir do talão é iniciado pelo dedo mínimo (4), e o arco para cima na ponta é iniciado pelo indicador. Esta é, certamente, uma  versão bastante simplificada, dessa postura na sua forma mais elementar. Em situações musicais reais, os arcos envolvem um infinito sortimento de diferentes comprimentos, toque e partes do arco; de modo que o engajamento de cada um dos dedos da mão direita se dá em todas as combinações e quantidades possíveis, de modo a expressar o que quer que o artista sinta e queira trazer à tona a cada momento. Tente sentir com seus dedos no arco enquanto toca, e verá o que eu quero dizer. Combinando isto com o braço (ao invés da mão) movendo o arco, você pode ouvir um som que é não somente muito mais livre e ressoante, mas também que libera milhares de nuances, cores e variedades. É este tipo de coisa que faz a diferença num mundo entre arte e a falta de. Especificamente, é o que faz o som do cello expressivo e interessante. Dá ao som a habilidade de comunicar uma variedade de coisas, ao invés de apenas uma coisa. Ter apenas uma opção é não ter opção alguma. Não há nada mais desapontador do que a experiência que todos já tivemos, de ir a um recital de cello, ansiando pela satisfação da música e do instrumento, e então, após 10 minutos, perceber que você já ouviu toda a limitada gama expressiva que o cellista, em outros casos habilidoso, é capaz de produzir com o instrumento – e o concerto de algumas horas ainda está no início. Isto traz tédio para a coisa que nós mais amamos, levando a uma das mais cruéis ironias.


Further implications/Outras implicações


  Até agora, tudo o que eu disse foi em referência ao arco. Mas se aplica igualmente à mão esquerda em toda a gama de suas funções. Por exemplo: potencializado pelas costas, e embasada no calcanharda mão, com a lateral do pulso dirigindo, o braço esquerdo faz o transporte da mão, levando-a para cima e para baixo sobre o espelho do instrumento (espelho significando aqui toda a parte do instrumento que fica sob as cordas, onde as pontas dos dedos fazem encostar a mesmas determinando a altura do som) – com juntas elásticas, flexíveis nos dedos, pulso, cotovelo e ombro. Como ponto focal para a passagem da energia, a região do pulso/base da mão (como a área do tornozelo ao caminhar) faz a “mira” e aponta a próxima nota numa mudança de posição – não os dedos, que por sua vez não podem, mesmo se quisessem fazer a mudança, mesmo que eles ajam como se estivessem eles próprios fazendo-a, o que neste caso só traz mais tensão desnecessária, assim como aumenta o risco de uma nota errada – na verdade faz as notas parecerem necessitar sempre de um reforço, visando alguma segurança técnica. Ao tentar, você sente a diferença. Assim como a questão da sonoridade com o arco, tocar afinado é questão do corpo sentir-se liberto para responder àquilo que o ouvido ouve, no sentido da antecipação da audição interna. Assim, por exemplo, para o arco, a questão não é se a mão do arco está mais alta ou mais baixa, o que sempre varia de acordo com situações musicais a cada caso, mas de o braço estar conectado às costas, de modo que a fonte da energia possa provir as necessidades artísticas, que só podem realmente ser atingidas a partir de não haver força muscular, peso ou rigidez. Margaret sempre dizia que não deve haver interferência entre o ouvido interno e a ponta dos dedos. Neste sentido, o que se beneficia mais é justamente... a música. É interessante pensar sempre que para que qualquer idéia musical em potencial desenvolvida pela criatividade humana possa se manifestar prontamente, cada um de nós está umbilicalmente ligado e dependente do corpo, e do seu mais íntimo cultivo. Que estejamos liberando as pulsações do vibrato para obter diferentes intensidades e profundidades, ou liberando a sensibilidade do braço do arco visando um lirismo, ou inflexões e acentos, a música,  para se realizar, requer uma passagem desobstruída vindo de dentro do corpo do instrumentista até o ouvinte. Um artista tem algo dentro de si  que precisa ser comunicado; se os canais físicos estiverem bloqueados, está mensagem urgente não pode chegar ao seu destino – em detrimento de tudo o mais. Se for este o caso, então todas as conquistas na técnica e a compreensão interpretativa no mundo são em vão.


  É importante notar que esta abordagem física, por sua natureza, resolve todos os problemas relativos a dores ou lesões relativas a tocar. Nenhum conhecimento médico é necessário; basta saber como se utiliza o próprio corpo com arte em primeiro lugar – e todas as questões envolvendo dores/lesões se dissolvem ao longo desta utilização. Gostaria de dizer que a “boa nova” sobre tocar o cello é que tudo aquilo que se pode sentir melhor também soa melhor, e vice-versa. Tocar o cello nunca deve machucar, e dores e lesões existem na proporção inversa da arte.


  Até este ponto, eu parcialmente descrevi 2 de aproximadamente 10 princípios físicos que o seminário abrange – digo “aproximadamente” porque pela sua própria natureza, esses princípios sempre se desdobram, e não são jamais uma “resposta” pré-fixada. Os princípios apresentados foram a conexão corpo-mente, e o ligar-se a fonte de energia. Vou, de maneira muito sucinta mencionar mais dois, e deixar para o seminário o seu desenvolvimento mais completo bem como os outros 6 princípios (sendo todos igualmente importantes tanto quanto os descritos até aqui).


  Quando falamos de fontes de energia, um dos melhores exemplos é o princípio da força através da flexibilidade. É um paradoxo “Zen” que algo que é flexível seja na verdade mais forte do que algo rígido – e isto se aplica a todos os aspectos da arte do cello. Algo análogo a isso ocorre na construção de prédios e pontes para resistirem a terremotos: as estruturas são mais fortes quando elas podem vergar um pouco. Os pneus dos carros também, por serem flexíveis, “agarram” às ruas e avenidas – o que não fariam caso fossem feitos de aço inoxidável. Como Margaret amava dizer “a era da estrada de ferro se foi; estamos na era do pneumático de borracha!”. Nas relações humanas não é diferente: uma relação torna-se mais forte quando um dos dois sabe ceder e dar razão ao outro, e assim consegue-se ultrapassar eventuais crises ou divergências; mas quando os dois lados são muito “incardidos”, nunca cedendo, a ligação pode, eventualmente sob pressão ruir, sendo por isso mesmo mais fraca. Nós deixamos de ter esta flexibilidade física no cello, porque impensadamente acreditamos que somos mais fortes se estivermos rígidos – quando, na verdade o oposto que é verdadeiro.


  Ao tocar o cello, podemos utilizar este princípio através de algo que chamamos “sucção aderente”, e refere-se a 3 coisas: a maneira como a mão segura o arco; a maneira como os dedos da mão esquerda abordam a escala (ou espelho do instrumento); e por fim a maneira como o arco entra em contato com a corda. Aderir, mas não no sentido de segurar ou agarrar alguma coisa, e sim como uma coisa que adere através do contato com uma superfície, por sua própria natureza. A questão é ter esse contato “borrachoso” e “elástico” – como quando um bebê pega um de nossos dedos com toda a sua mão, e você quase sente que não consegue soltar. Como um bebê ainda não tem aquela musculatura para contrapor à de um adulto, compreende-se que o poder tátil de agarrar das estruturas da pele da criança está, justamente na flexibilidade desse agarrão – na sua maciez, não numa dureza. Tente isto com o cello, e os efeitos serão libertadores: para que os dedos mantenham esta “sucção”, todas as outras junções ao longo do braço terão de tornar-se elásticas e maleáveis.


  O outro princípio, apenas de passagem e como referência, é o uso da energia negativa. Enquanto empurrar para frente com os braços seria a “energia positiva”, puxar para trás na direção do centro do corpo é a correspondente “energia negativa”. Como analogia, para podermos obter força elétrica, por exemplo de uma bateria, as duas polaridades, positivo e negativo, se fazem necessárias – e ainda assim, nossa cultura globalizada é tão obsessiva com a idéia de “jogar para frente”, que em muitos aspectos nós simplesmente esquecemos o “jogar para dentro”. (A carga elétrica é comparável ao tipoespecífico de energia de que precisamos no cello). Uma maneira como podemos reintroduzir este elemento perdido ao tocarmos nosso cello é subitamente “puxar” o arco para dentro na direção da corda, mesmo enquanto um longo arco para baixo está abrindo para fora na frente, quase como num barco a remo com a sensação no braço direito de uma puxada para trás em direção ao centro do corpo, num movimento circular “horizontal”, e, ao mesmo tempo que o centro do corpo se move para frente (No arco para cima dá-se o mesmo em sentido reverso). Isto relaxa a tensão criada por um exclusivo empurrão para frente com o arco; equilibra o fluxo de energia saindo das costas, de modo que ele não vai todo para frente; cria um tônus extra no contato entre o arco e a corda, nem forçando o som nem encobrindo a superfície; e, assim como a eletricidade, produz uma vitalidade dinâmica nos movimentos do corpo e no som. De um modo bastante vigoroso e significante isto ajuda a perseguir as qualidades artísticas. Esta “energia negativa” na mão esquerda é obtida puxando os dedos na direção da corda e espelho (escala do instrumento) na direção do centro do corpo (mantendo o cotovelo balanceado, equilibrado, e não “afundado”), diferentemente de empurrar os dedos de cima para baixo e/ou apertar com o polegar. Trata-se não apenas de estar relaxado, mas de saber como puxar para dentro em direção ao centro, e assim dirigir a energia de modo que dissipe tensão, libertando as qualidades artísticas.


   Esta foi apenas uma pequena degustação de algumas dessas idéias – como uma lambida num sorvete de calda quente, que é melhor do que nada, mas não como chupar o sorvete todo. Desenvolver este material a uma verdadeira profundidade requer não apenas muito mais tempo, como também a oportunidade de um encontro em pessoa e com a mão na massa. Uma boa parte de tudo isto depende de ser transmitido através do toque, de uma pessoa a outra. Também é necessário eu estar presente para poder responder às suas perguntas, e atravessarmos uma extensa gama de objeções. Tenho ensinado esse material por 30 anos e, acredite-me, eu já lidei com todas as concebíveis objeções. Eu posso garantir que tudo o que você acabou de ler é apenas a “ponta do iceberg”, e que a abordagem é abrangentemente aplicável e é internamente consistente.


  Então, este é um começo – mas um que faz a diferença. Os resultados concretos de muitas décadas dos ensinamentos inovadores de Margaret nos forneceram uma tenra percepção do que é possível fazer. Isto tudo está em contraste gritante com o que ocorre no grande mundo da educação e interpretação de cello, em todos os níveis. O que vem a mostrar que a maioria dos cellistas está engaiolado na sua limitação auto-imposta. Há um antigo provérbio que diz: “a maioria de nós passa a vida inteira e morre sem exprimir verdadeiramente a sua música”. É irônico o quanto isto é verdadeiro no caso de músicos. Isto é apenas o resultado de uma perniciosa falta de força de vontade, ou melhor uma teimosa recusa a fazer um reexame das premissas básicas da própria maneira de pensar. Somos assim mantidos numa situação na qual a música permanece trancada com a pessoa, e aquilo que de melhor a atividade de tocar o cello pode dar ao mundo resta, permanentemente inalcançável. 

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