quinta-feira, 1 de setembro de 2011

A era do violoncelo

Ignorado por autores do período clássico,
o instrumento hoje brilha na música erudita

Materia de Sérgio Martins

  Antes, eram o piano, o violino ou mesmo a flauta. Favoritos dos grandes compositores dos períodos barroco, clássico e romântico, esses instrumentos – e seus intérpretes – davam as cartas no mundo erudito. No século XX, porém, um enjeitado, tido quase sempre como mero "recheio" da orquestra, começou a ganhar lugar de destaque nesse panorama: o violoncelo. A virada se deu em 1939, quando o espanhol Pablo Casals gravou as Seis Suítes para Violoncelo, de Johann Sebastian Bach. Até então consideradas um exercício de aprendizado, as peças revelaram o potencial solístico desse instrumento: uma sonoridade cheia, que passeia do melancólico ao dramático, mas é sempre emotiva, e uma certa qualidade teatral na maneira como o músico o abraça junto ao corpo. Desde então, solistas como o próprio Casals e o russo Mstislav Rostropovich fizeram muito por conferir ao violoncelo o respeito merecido. O instrumento teve até uma figura trágica, item que sempre dá ibope – a inglesa Jacqueline du Pré, um talento de primeira grandeza, que terminou destruída pela esclerose múltipla. Nos últimos anos, poucos artistas têm se dedicado a ele com o afinco, e os excelentes resultados de público, de Yo-Yo Ma. O sino-americano de 51 anos está em todas. Nesta semana, desembarca no Brasil para recitais em São Paulo e no Rio de Janeiro. Junto com a pianista inglesa Kathryn Stott, ele vai executar obras dos compositores românticos Franz Schubert e César Franck e do autor moderno Dmitri Shostakovich, além de dois agrados ao público latino-americano – um tango de Astor Piazzolla e composições de Egberto Gismonti.
 
  Descoberto pelo regente americano Leonard Bernstein quando tinha 8 anos de idade, Yo-Yo Ma é um instrumentista excepcional e versátil, capaz de pular da seriedade da obra de Bach a músicas do folclore indiano e do chinês. Tal polivalência, aliás, motiva seus detratores a acusá-lo de ter se tornado um arroz-de-festa, que volta e meia se dedica a trabalhos de música popular brasileira e americana sem critério ou sensibilidade estilística. O fato, porém, é que, goste-se dela ou não, a "militância" de Yo-Yo Ma tem se mostrado indispensável na redefinição do papel do instrumento. Mozart, por exemplo, compôs 27 Concertos para Piano, mas nenhum para violoncelo. Graças à atividade de Casals e Rostropovich, diversos compositores modernos e contemporâneos passaram a criar peças para ele – estima-se que apenas Rostropovich tenha estreado 240 obras, entre concertos e sonatas. Yo-Yo Ma vem complementando o trabalho de seus antecessores, ao dar ao violoncelo um acento popular – a ponto de o nome do músico ter virado piada do seriado americano Seinfeld. Ma, além disso, preenche todos os requisitos necessários na formação de um grande instrumentista. É um solista requisitado, seja na música de câmara, seja à frente de grupos sinfônicos. E é, da mesma forma, capaz de integrar um naipe de violoncelos sem ter arroubos de estrelismo ou querer roubar a cena de orquestra.
 
  O papel do violoncelista dentro de uma orquestra é fundamental. Sua função mais comum é construir a base harmônica de uma obra para que instrumentos de tessitura aguda – como violino, oboé e clarinete, entre outros – possam trabalhar a melodia. Em linguagem leiga, é praticamente o mesmo papel do baixo numa banda de rock ou de soul music: o de segurar o ritmo para que o guitarrista possa solar. A partir do século XIX, o instrumento assumiu também esporadicamente a função de solista – a Quarta e a Sexta Sinfonia, de Tchaikovsky, e a Segunda Sinfonia, de Brahms, possuem solos de violoncelo tão marcantes que volta e meia são utilizados em audição para orquestras. Os violoncelistas pertencem ainda a uma casta privilegiada. Tocam sentados e não têm dificuldades no manuseio – ao contrário da viola e do violino, em que os músicos têm de torcer o pulso esquerdo para executar uma obra. Outra vantagem de tocar violoncelo, apregoam os instrumentistas, é que ele é imune às anedotas que pululam numa orquestra. "Existem centenas de piadas sobre violistas, contrabaixistas e metais, mas não conheço uma boa sobre violoncelista", diz o maestro Júlio Medaglia. Os mais modestos alegam que isso se deve ao fato de os violoncelistas serem inteligentes e refinados. (E nem um pouco egocêntricos, ironizariam os violinistas, rivais no gosto do público.)
 
  Existe algo de especial no som do violoncelo. Como a sonoridade dele se assemelha à da voz humana, poucos instrumentos transmitem uma gama tão grande de sons. O autor Richard Strauss tinha plena consciência dessa qualidade. No poema sinfônico Don Quixote, coube ao violoncelo interpretar o personagem principal, e o grito de dor de Quixote ao morrer está entre os temas mais pungentes da música sinfônica. Às vezes um solo de violoncelo vale mais que discurso. Em 1968, enquanto as tropas russas invadiam a Checoslováquia, Rostropovich fazia um concerto no Royal Albert Hall, em Londres – no qual tocou, em sinal de protesto, o Concerto para Violoncelo, do checo Dvorák. Em outras ocasiões, o violoncelo é a válvula de escape para uma personalidade problemática. Habitualmente tímida e insegura, Jacqueline du Pré virava uma espécie de super-heroína quando solava em seu violoncelo – e é sintomático que muitas mulheres tenham adotado o instrumento depois de ouvir sua versão para o Concerto para Violoncelo, de Elgar, que hoje é uma referência para o instrumento.
 
  O violoncelo, quem diria, tem ainda um certo dom para despertar instintos carnais. "As mulheres perdem a linha quando o ouvem. Elas adoram aquela sonoridade", diz Júlio Medaglia. O professor e violoncelista Luiz Hernane Barros de Carvalho, porém, acha que o segredo está no manuseio. "Existe algo de sexual na combinação de músico e instrumento. As posições em que se toca o violoncelo são praticamente as mesmas em que se faz sexo", diz. Com tantas vantagens, não é de admirar que seu reinado, hoje, pareça inabalável.

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