Aos 53 anos, Antonio Meneses resistiu um pouco mas acabou aceitando o convite dos jornalistas João Luiz Sampaio e Luciana Medeiros para a publicação de um livro de relato de sua vida até aqui. Resultado de um trabalho de pesquisa e longas horas de entrevista com o violoncelista pernambucano radicado na Suíça, Antonio Meneses, arquitetura da emoção está sendo lançado pela editora Algol este mês, quando Meneses vem de se apresentar no Rio e ruma esta semana para uma série de três concertos com a Osesp na Sala São Paulo.
No Rio, ele deu semana passada uma versão sonora, robusta e romanticamente franca do Concerto de Schumann. Em São Paulo, serão ouvidos os Concertos nº 1 de Chostakovich e o de Elgar. Nas duas cidades, ele se apresenta com um instrumento feito na primeira metade do século XVIII pelo luthier napolitano Alessandro Guadagni, que se aperfeiçoara em Cremona com Nicolò Amati e Antonio Stradivari.Esse violoncelo, comprado por Meneses ao colega suíço Thomas Demenga, é considerado pelo músico brasileiro um “puro-sangue”: “Até hoje esse é o meu melhor instrumento, entre todos os que já tive”, diz ele, em depoimento reproduzido no livro. “Tem uma qualidade e uma quantidade de som bem maiores do que todos os outros violoncelos, me abriu possibilidades interpretativas muito maiores. Sinto o Gagliano como um cavalo puro-sangue árabe, poderoso, tem capacidade de ir muito mais longe do que um pangaré. É um instrumento maravilhoso, uma obra de arte, com a história documentada.”
Até chegar a ele, Meneses passou por uma longa linha sucessória, conforme relatam Sampaio e Medeiros. Depois de vários instrumentos emprestados, alugados ou pouco dignos de nota, o primeiro cello de peso que ficou em seu poder longo tempo foi um instrumento antigo que pertencia a seu mestre Antonio Janigro, com quem se aperfeiçoou na Alemanha: um Guadagnini que, mais tarde se descobriria, não era um original, mas uma cópia. Em 1979, depois de uma campanha de arrecadação de fundos, Meneses pôde dotar-se de um Guarnerius que ficou em seu poder cerca de dez anos. “Chegou um momento em que eu comecei a ficar decepcionado: o som que eu escutava dentro de mim não correspondia ao que eu ouvia do instrumento”, diz ele no livro. “Mas hoje talvez eu não o tivesse vendido – teria talvez procurado outro luthier para fazer ajustes e modificações, porque o instrumento muda com o tempo, quase como um ser vivo. Ele vai envelhecendo; as variações de temperatura afetam as fibras, o calor e o frio vão dilatando e contraindo a madeira e, com o tempo, ela perde a agilidade.”
Vendido o Guarnerius no início dos anos 90, Meneses comprou um Landolfi que ficou em seu poder pouco tempo e também usou por dois anos um Goffriller que pertencera a Pablo Casals. Passaram ainda por suas mãos um Gofriller próprio, e não apenas emprestado, um Vuillaume que era cópia de Stradivarius feita na primeira metade do século XIX.
Mas, surpreendentemente, Antonio Meneses está atualmente apaixonado por um violoncelo moderno, feito na Suíça pelo luthier Michael Stürzenhofecker. Por especial autorização sua e dos autores, reproduzo a seguir o trecho de Antonio Meneses, arquitetura da emoção em que é relatado seu encontro com esse instrumento que agora o acompanha também em suas turnês e gravações. Podemos perceber igualmente, nesse relato, as muitas sutilezas e o tipo de preocupações que rondam um músico do seu nível na escolha do instrumento.
O livro terá lançamento em São Paulo no dia 27 de outubro, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, e no Rio de Janeiro no dia 29 de outubro, na livraria Travessa do Shopping Leblon.
A seguir, o trecho de Antonio Meneses, arquitetura da emoção
Um jovem violoncelo
Numa pequena casa de dois andares, na cidade suíça de Cully – à margem do Lago de Genebra – fica o ateliê de Michael Stürzenhofecker. Na fachada, o letreiro, LUTHIER, está pendurado acima de um violino
inacabado; a oficina, com seus tornos manuais, tábuas e potes de cola e verniz, tem grandes janelas por onde entra a luz invernal, acentuando os matizes da madeira crua nas dezenas de instrumentos em diversas
fases de confecção. O aroma é agradabilíssimo. Michael celebra a chegada de Antonio, que vem carregando sua mais perfeita criação – um violoncelo único, cuja madeira foi comprada a peso de ouro.
Passando pela cidadezinha, a caminho de Genebra, Antonio aproveita para deixar o instrumento para um pequeno ajuste no espigão. Na oficina, diverte-se examinando cavaletes, tampas, fundos, volutas de violinos, violas e violoncelos. Michael, sempre sorridente, acomoda o violoncelo em seu estojo e faz questão de mostrar também a casa onde vive, alguns metros à frente na rua sinuosa. Muito tempo atrás, conta ele, ali era parte do hospital da cidade. O porão, hoje um quarto de costura, tem abóbadas pintadas. A data do afresco: algum momento do século XII.
Alto, magro, simpático, no fim da casa dos quarenta anos, Michael se apresentou pela primeira vez a Antonio no início dos anos 2000, ao final de um concerto em Genebra. “Ele apareceu e disse: ‘Meneses, sou luthier e gostaria de mostrar um instrumento’. E eu, que sou curioso, disse: ‘Claro!’. Experimentei, adorei, ótimo instrumento. Durante vários anos, toda vez em que eu tocava nessa região de Lausanne e Genebra ele aparecia.” Antonio passou a conversar mais com Michael, levou o Gagliano para que ele fizesse um novo cavalete, ficaram amigos. Um dia, no fim de 2007, o luthier estava sério e ansioso para conversar com Antonio. “Ele me disse que tinha conseguido uma madeira realmente singular e que ia construir um instrumento muito, mas muito especial. Contou que é muito difícil encontrar madeira de qualidade hoje em dia, talvez porque existam cada vez menos florestas, e muito menos ainda árvores antigas. E é preciso lembrar que, quando se derruba a árvore, a madeira ainda precisa ficar secando durante dez, vinte anos. Eu acho – não tenho certeza – que a madeira veio da antiga Iugoslávia, onde ainda existem florestas centenárias; e me parece que era também dali que saía a madeira usada por Stradivarius. Veneza e Cremona são bem perto desse local, a atual Croácia, e isso faz todo o sentido. Pois então: um dia, o fornecedor de Michael apareceu com essa madeira. Custava uma fortuna, era madeira especial de verdade.”
Michael comprou, a peso de ouro, matéria-prima suficiente para fazer um violoncelo, alguns violinos e uma viola. No fim de 2009, ligou para Antonio e combinou mostrar o instrumento recém-terminado. “Ao abrir a caixa já fiquei boquiaberto – nunca tinha visto um violoncelo moderno com essa beleza, feito de uma madeira que a gente vê como é especial num primeiro olhar; me lembrou os grandes instrumentos antigos, os Stradivari. Uma coisa maravilhosa.”
Mas o novo violoncelo era mais do que um rostinho bonito. “Comecei a tocar – e fiquei ainda mais encantado: era uma quantidade de som, de uma qualidade que eu não sabia ser possível em um instrumento moderno. Ele próprio ficou assustado, tremia – já sabia que o instrumento era bom, mas não continha o nervosismo. Parecia que estava parindo naquele momento. Depois me contou que, quando terminou de confeccioná-lo, tocou algumas notas e disse ‘opa!’; e que um amigo violoncelista, a quem levou o instrumento para uma experiência, quis comprar na hora. Mas Michael queria me mostrar primeiro. E eu disse: ‘É, esse aqui está realmente superior a tudo o que você fez até hoje em matéria de violoncelo. Eu quero continuar experimentando’. Michael tinha que viajar a Berlim a negócios; eu tinha um concerto marcado na mesma cidade na semana seguinte, e combinamos de nos encontrar lá. A bem da verdade, eu não estava pensando nem em levar o instrumento dele, queria apenas experimentar mais algum tempo. Mas, uns três dias depois, liguei para Michael: ‘Vou tocar nesse violoncelo com orquestra’. Seria a Konzerthaus Orchester, que tem
sua sede onde era a Alemanha Oriental. No programa, o Concerto de Penderecki, que tem uma formação enorme. Depois, eu faria ainda um concerto na Philharmonie com a Sinfônica de Berlim, tocando o Duplo de Brahms.”
No dia do primeiro ensaio, Michael estava no fundo da plateia – outra vez, inquieto. “Lembro dele andando pra baixo e pra cima, nervoso. Eu estava tocando – e ninguém estava me cobrindo! Logo depois, os músicos da orquestra vieram olhar – ‘que instrumento é esse? Moderno? Uau’. E Michael atestou que dava para ouvir tudo, ‘e com qualidade’.”
“A sonoridade deste violoncelo é como a voz de um barítono muito potente, cheia”, define Antonio. “Ao mesmo tempo, quando chega aos agudos, tem doçura, mas com uma potência que parece às vezes a de
um trompete. Eu toquei esses concertos e já em Berlim falei para o Michael: ‘Eu vou comprar esse instrumento, é meu’. Ele ficou muito feliz, inclusive porque não é normal essa decisão rápida; geralmente
se compra o instrumento depois de experimentar durante um mês, ou às vezes meses. Os luthiers ficam na espera, e se o músico diz não, eles têm de começar tudo de novo com outra pessoa. Nesse caso, em
menos de uma semana eu tinha decidido comprar.”
O novo violoncelo custou relativamente caro para um instrumento moderno – que, dependendo do luthier, das circunstâncias, pode valer entre quinze mil e cinquenta mil euros. “E esse estava no patamar mais alto. Os últimos concertos e recitais de 2009 foram todos com esse novo instrumento, no Rio, em São Paulo, em Porto Rico, na Colombia e no Equador tocando Villa-Lobos; todo mundo espantado com a potência e a qualidade sonora.”
O processo de escolha de um instrumento enfim é descrito por Antonio como “uma combinação de experiência e sorte” – ou intuição, um combo de percepções que, naturalmente, se aprimoram com o passar dos anos. “Você precisa ter a noção do que o violoncelo é capaz. Hoje em dia eu sei, mas a certeza ainda pode ser difícil: em geral se experimenta um instrumento numa sala pequena, onde qualquer violoncelo pode soar bem, ou ao menos decentemente. E é preciso saber como ele projeta o som numa sala de concertos. Algumas vezes eu errei, considerando bom o suficiente aquilo que eu estava ouvindo ali, mas que não funcionou numa grande sala.” Entre os atributos para escolher o instrumento que só a experiência traz, está, é claro, a vivência direta de diferentes instrumentos nas mais diversas circunstâncias. “Tem que ter parâmetros também, conhecer instrumentos, o melhor, o pior, saber até onde podemos ir como instrumentistas – o céu é o limite?” O processo de escolha às vezes conta com conselhos de amigos, ou inclui a chance de tocar numa sala de concertos para alguém escutar ou mesmo ouvir alguém tocar; mesmo
assim, ressalta Antonio, “tudo isso não dá uma ideia exata. Se eu peço a um aluno para tocar, ele usa o instrumento de maneira totalmente diferente de mim. Descobrir uma pessoa que toque parecido comigo é
quase impossível. Ou seja, a escolha é feita baseada em intuição, sorte, sentimento; você gosta porque tem uma cara bonita, não sei… são diversos fatores e circunstâncias”.
Dentre os muitos instrumentos que experimentou na vida, “incluindo excelentes Stradivari”, Antonio guarda uma extraordinária lembrança. “A primeira vez em que eu vi o que era possível num instrumento foi na Biblioteca do Congresso de Washington. Eles têm em acervo um Stradivarius desses grandes, que não foi diminuído, e que eu só pude usar ali, nos ensaios e em um concerto que o [Trio] Beaux-Arts fez lá. Quando eu comecei a tocar, fiquei assustado porque não sabia que aquilo era possível. E o instrumento foi tendo cada vez mais som! Abrindo, abrindo… a impressão que eu tive era de que não havia limite. Ele chega à potência de um contrabaixo, especialmente nos graves. Foi quando eu vi o que é um grande instrumento. Eu estava tocando um trio de Haydn, e era de assustar o som, um transatlântico, um trator, uma coisa louca.”
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