fonte: http://violonsambista.wordpress.com/
Amo orquestras. Amo assistir orquestras. Amo tocar em orquestras (apesar de meu lado cada vez maior de sambista, que me diverte e me encanta, me dá leveza).
Todo mundo que convive comigo nas orquestras SABE que estou SEMPRE reclamando, mas de verdade, confesso, eu AMO tocar em Orquestras. Eu queria que as condições fossem melhores, que as coisas fossem mais bem feitas, que houvesse ensaios mais exigentes, mais ensaios para cada concerto, mais respeito à grandiosa obra já escrita para orquestra, pelos maiores gênios da humanidade… por isso reclamo…
A “Orquestra Ideal”, como uma Orquestra da Philadelphia, uma Filarmônica de Berlim, uma Filarmônica de NY, está sempre soando na minha cabeça, nas minhas concepções, por isso, é óbvio que estou sempre reclamando ao tocar nas nossas queridas orquestras brasileiras, porque infelizmente, para quem já teve o privilégio nessa vida de ouvir uma dessas MEGA orquestras maravilhosas, SABE que não há a menor possibilidade de comparação, ainda, infelizmente, quem sabe um dia. Para isso trabalhamos, em busca dessa perfeição que sabemos que nunca vamos atingir: somos idealistas.
Eu tenho que confessar o que, estranhamente, parece inconfessável: eu sou musicista de orquestra mesmo. Não nasci para solista, não gosto de me impor, de mandar, nem de aparecer, e, apesar de solar ser muito divertido e um imenso desafio que nos faz crescer imensamente, é um grande sofrimento e uma grande pressão, é brutal, talvez seja meio masoquista, mais do que consigo ser, pelo menos na maior parte do tempo.
Para camerista sim! Nasci também para camerista, adoro. Pois Música de Câmara é Champagne com caviar, é para poucos, pessoas que querem tocar mesmo que isso implique ficar mais pobre, não receber, receber pouquíssimo. Não ter um enorme público. É uma arte que consegue ser ainda mais delicada, é sutil, gostoso, lindo, prazeroso, feliz e divertido… é “La creme de La creme”. É andar de 1ª. Classe, de Iate, coisa assim. Felizmente tenho tido esse privilégio com meu quarteto e meu duo (Quarteto Nobilis e duo com a pianista Olga Lazareva – maravilhosos amigos e maravilhosos artistas!).
Mas… confesso que NASCI para ser musicista de Orquestra. E digo mais: fila. E digo mais, músico de fosso, escondidinho, que faz ballet e ópera, entra e sai quase sem ser visto.
Não nasci para spalla. Me explico: tenho déficit de atenção, e o spalla, além de ter de liderar (coisa que não me deixa nada à vontade), tem que estar MUITO atento. Ele tem de dar entradas, decidir arcos interessantes, ser pessoa legal com os demais, mas ainda assim ser líder, decidir sempre, ouvir sem deixar os outros tomarem conta, ser sério, ser calmo (coisas que não sou, sou uma brincalhona ansiosa!), ser delicado, mas, principalmente, ele tem que ter uma capacidade de prever coisas, se antecipar, e MUITA atenção, coisa que confesso que realmente não tenho. Esse déficit de atenção só foi detectado por mim depois de 15 anos de carreira, ao ler um livro sobre o assunto, logo, não havia mais jeito, e, apesar de isso me atrapalhar MUITO, dá para ir levando. Por exemplo, se você for me contar um fato e no meio da frase disser: “ …eh…” e continuar a sua narração, no meio desse “ …eh…” (uma simples pausa para um respiro, ou para se lembrar de algo), eu já pensei pelo menos 3 coisas diferentes, de outros assuntos. Acredito que concentração absoluta é característica de um bom spalla. Então… sou fila mesmo.
Nasci, vou confessar o absolutamente inconfessável, nasci para ser daquelas estantes do meio. Gosto de servir, sempre prefiro virar página para meu colega, não fico muito à vontade com alguém virando para mim, com essa “superioridade hierárquica”. Eu era aquela criança que, numa disputa, pegava o último lugar, a menor quantidade de balas, o pior instrumento da bandinha, eu não nasci para essa competição ferrenha, para me engalfinhar com um monte de gente para pegar o que eu queria mais, em detrimento de deixar outro infeliz. Mas… o mundo também PRECISA desse tipo de gente. As pessoas que servem também são MUITO necessárias. A sociedade nos faz achar que só tem valor o que manda, o que faz sucesso, o líder. Mas isso não é, em absoluto, verdade. O Mundo também tem necessidade de “formiguinhas”. Ser formiguinha é uma arte. Me explico ainda mais a seguir.
Uma vez um colega definiu um dos maiores violoncelistas de orquestra do Brasil, elogiando-o, como “formiguinha”. Ele disse: “Fulano é formiguinha, sabe, é o cara que faz o trabalho que tem que ser feito, que leva as partes pra casa e estuda tudo, tudo mesmo, até afinação, aquele que, quando ninguém está tocando aquela parte, só dando uma enrolada, fulano é o cara que está tocando tudo, todas as notas, porque alguém tem que estar tocando mesmo! Eu não tenho tempo pra ficar estudando partes”… Bem, essa pessoa, apesar de ter dito isso, é um músico maravilhoso, e desde então eu sonho e trabalho para ser essa formiguinha. Além de ser algo extremamente necessário e digno, eu acho o trabalho de formiguinha, do simples músico de orquestra, algo lindo, sutil, delicado, especial.
Considero esse trabalho como, simbolicamente, uma parábola da vida de um ser humano. Se você faz seu trabalho de formiguinha BEM feito, a SUA parte, a Orquestra melhora, o mundo melhora. É como na frase de Guimarães Rosa: A colheita é comum, mas o semear é sozinho”.
Acho a arte de se tocar em orquestra uma das mais elaboradas, complexas, difíceis e incríveis: o trabalho para se aperfeiçoar é infinito. Você precisa tocar bem, você precisa ter sua parte bem feita (só esse item é trabalho para a vida toda), ser pontual, não faltar, ser prestativo, ser bom companheiro, não pode ser mal humorado (como eu, ai, ainda tenho MUITO que evoluir), você precisa trabalhar bem em equipe (isso, acredite, pode ser extremamente difícil, dependendo da situação). Você precisa respeitar hierarquias, precisa amar o que faz para poder fazer bem feito, precisa SEMPRE dar o seu melhor.
Tem um cellista que admiro muito, que toca o tempo todo como se fosse concerto. Cheio de garra, de vontade, de entusiasmo e de capricho. Para ele, jogo é jogo, mas treino também é jogo. Entrega total. Por isso o admiro tanto. Ah, e a cada ensaio ele vem tocando melhor. Isso é ser bom músico de orquestra.
Um bom músico de orquestra, também, precisa conhecer música de orquestra, de ópera, de ballet, concertos de outros instrumentos, CONHECER mesmo, saber até as letras das óperas, se possível, pelo menos das árias famosas, e isso leva tempo, estudo e MUITOS anos de experiência. Precisa ter hábito de ouvir muita música, de muitos compositores, de muitos estilos, se possível conhecer as partituras da música toda (a parte do maestro), ter hábito de ouvir acompanhando a partitura. Conhecer. Isso poupa muitos erros nos ensaios.
Precisa respeitar hierarquias, jamais peitar os spallas, mesmo se eles forem piores tecnicamente (sim, isso muitas vezes pode acontecer). Precisa agir assim: aprender com quem sabe mais, e, também, com quem sabe menos, e fingir que sabe menos do que quem acha que sabe mais, para haver respeito e bom clima. Nunca comprar briga (eu já fiz isso umas vezes, no passado, e me arrependi pra sempre), nunca levantar a voz, e quando lidar com um colega doente mental, no mau sentido da palavra (sim, incrivelmente, isso pode acontecer), com aquele EGO maior do que o universo e a capacidade de criar encrenca com o mais calmo dos colegas, achar um jeito de não provocar esse maluco, e de pôr todos os panos quentes possíveis na possível encrenca. É claro que, às vezes, nem isso funciona.
O músico precisa, além de tudo, ser tão bom artista, a ponto de fazer idéias musicais maravilhosas, de dinâmicas e de fraseados (já que, na maior parte das vezes, os maestros não têm essas idéias, ou nem tem tempo de ficar trabalhando a música frase por frase – peraí: isso não é o que eles deviam fazer?!?! Bem, eles não fazem isso muito, então cabe a nós). Essas idéias musicais têm de ser tão lindas a ponto de levar o naipe inteiro junto, a ponto de levar o outro naipe do lado, a ponto de “infectar” de bom gosto e de graça a orquestra toda, o público todo, a música toda, a vida toda.
Além desses “pequenos detalhes”, o músico precisa ter boa leitura (tenho trabalhado arduamente para melhorar isso em mim, pois é um dos meus grandes problemas, e acho que é o de quase todo mundo que escuta e decora logo, a pessoa para de ler, e então acaba não treinando tanto isso). Precisa tocar COM os outros. Afinar COM os colegas, timbrar com o colega do lado, com o naipe do lado, às vezes COM os DOIS naipes do lado, mais ainda com o outro naipe lá longe, que está fazendo a nota grave, ou tocando a mesma melodia que você, ou um contracanto da sua voz. O músico de naipe, quando sola o seu naipe, tem de solar em naipe mesmo, ou seja, o som dos seus instrumentos tem de ser algo único, e não 10 cellos, ou 40 violinos, um tentando aparecer mais do que o outro.
O músico de orquestra tem de aprender a aceitar idéias alheias, tocar com arcadas, articulações, idéias, tempos, concepções, regiões de arco, gostos alheios, seja de seu chefe (spalla, maestro, etc) ou colega, ou seja, também aprender a dançar conforme a música, ainda que seja o avesso da sua idéia pessoal (e normalmente, sempre é o avesso).
Ah, e o músico de orquestra deve SEMPRE tratar seu maestro com respeito, ainda que possa internamente, discretamente ou não, odiá-lo, achá-lo incompetente, achar seu gosto medonho, tem de haver respeito, mas SEM SE DEIXAR manipular, jamais. Isso é tão complexo quanto as idéias de Einstein. É algo quase impossível. Isso é um trabalho de titãs, realmente, quase impossível. Eu, da minha parte, quase sempre estou contra os maestros, mas muitas vezes (talvez a maior parte delas) eles não têm a menor idéia disso, porque estou sempre sorrindo, apesar do meu MEGA mal humor. Em Santos eles sabiam, a orquestra era pequena, e eu era muito bocuda, hoje em dia aprendi a ser menos bocuda, mas, ainda assim, me acho muito “cheia de idéias”, e isso, para os maestros, sempre parece altamente “subversivo”. Então, tenho ficado mais quieta (só um pouco), mas… confesso que às vezes é difícil, e fico ali, resmungando, muitas vezes mais alto do que seria prudente. Na TPM principalmente.
Não é fácil ser mulher em orquestra! As mulheres de orquestra são extremamente compromissadas com seus trabalhos (a maioria, claro), mas os homens ainda passam muito mais nos concursos, talvez saibam melhor se impor, ou talvez os maestros, secretamente, ainda achem os homens mais eficientes, mais inteligentes, sei lá. Se for isso, temos mesmo que manter nossos ódios aos maestros (não aos homens, é claro).
Bem, um bom músico de orquestra ainda tem que saber solar quando precisa, tem que ter a parte solo do spalla estudada (ou do 1º. Instrumentista dos sopros), para substituí-lo em caso de problema sério e necessária troca.
Ah, e o músico tem que saber acompanhar! Quando for acompanhamento, acompanhar. Sim, parece tão simples! Mas não é. Isso implica OUVIR. Ouvir implica se achar MENOS importante do que os outros, fazer aquilo que nossas mães e avós falavam: “quando um burro fala, o outro abaixa a orelha”. Tem que ser uma pessoa que ajuda, que gosta de amparar, tem que ser feita, no acompanhamento, a frase do solo, afinação e pulsação caminhando JUNTO com o solo, e não se impor jamais. Implica ser educado e deixar o outro aparecer. Aquela coisa de dar lugar para alguém passar. Implica ser gentil. Coisa rara na sociedade moderna. Sumir, embora estando ali, presente. Ser firme na pulsação e na afinação, e ainda assim deixar o outro liderar. Difícil!
Uma vez, um maluco professor da faculdade me chamou de canto e me disse: “sabe, eu assisti ao ensaio do coro, e reparei que você está sempre ligada em tudo, ouvindo todas as vozes, reparando em todas as coisas, você não devia ser musicista de orquestra! Você devia ser maestrina, ou solista…você tem bom ouvido demais para ser músico de orquestra!”… Desde então, esse professor despencou no meu conceito, foi a pessoa que mais menosprezou o músico de orquestra que encontrei na vida até hoje! E o cara é músico!!! Fiquei TÃO indignada, injuriada, até hoje me ofendo com ESSE comentário! Desde então, decidi para sempre: SOU MUSICISTA DE ORQUESTRA, que PRECISA de ter bom ouvido, para a orquestra ser boa, ora bolas!
Ah, sem falar que músico de orquestra TEM que estudar SEMPRE com afinador e com metrônomo, para aprender a ouvir, a ter humildade, são verdadeiros “pais dos burros”, e se TODOS estudassem com essas ferramentas tecnológicas maravilhosas, metade do trabalho dos maestros seria poupado.
Tudo isso, e mais milhares de minúsculas nuances fazem parte do dia a dia complexo e desafiador de um músico de orquestra. Acho minha profissão linda. Quando vejo uma orquestra fico sempre pensando quanto valem todos aqueles instrumentos juntos (não em valor financeiro, mas quanto esforço cada músico, cada família, fez para adquirir aquele instrumento, que é o melhor que cada um que está ali tocando foi capaz de comprar, a custa de MUITO sacrifício, na absoluta maior parte das vezes). Quantas horas cada um gastou com a bunda na cadeira estudando, quantos anos cada um estudou, quantas horas de abdicação daquele lindo sol lá fora, de ócio, de descanso, de sono, da saída com os amigos, do fim de semana com a família, de praia, de tanta coisa. Ofício MUITO nobre e MUITO complexo. Esses dias foi o dia do músico. Um aluno me falou, eu de verdade nem sei que dia é, mas eu tenho sim, muito orgulho de ser musicista de orquestra, porque o que seria da vida (da minha, com certeza), sem orquestas? O que seria de um filme maravilhoso, de um casamento, de um grande evento, de um musical, sem a música? O que seria de “E o vento levou” sem aquela trilha, por exemplo? E dos filmes do Spielberg?
Eu SOU musicista que CHORA em tuttis de orquestra românticos, em finais de óperas, que se emociona com a delicadeza e a complexidade dos barrocos, que é desafiada pela leveza dos clássicos, que se envolve pela garra dos modernos, que é afrontada e obrigada a aprender na marra pela dificuldade dos contemporâneos, que se arrepia inteira nos trechos ápices das músicas, que tenta fazer o melhor pelo benefício de um solista, que é iluminada pelo brilho dos outros.
Quando vi pela primeira vez uma orquestra, quando criança, foi amor à primeira vista. Aquela sensação de predestinação, de atração para o abismo. Eu SOUBE que era isso que eu ia querer fazer para sempre. E SOUBE que teria que abrir mão de MUITA coisa para isso. E chorei de emoção.
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