quarta-feira, 12 de outubro de 2011

O cânone do violoncelo

Sempre que possível, procuro seguir o conselho do grande violoncelista catalão Pablo Casals: começar o dia ouvindo Bach. Invariavelmente, minha escolha recai sobre alguma das gravações que tenho das “Seis Suítes para violoncelo solo”, opus BWV 1007 a 1012. Minhas preferidas são as de Casals (aqui, o prelúdio da 1ª Suíte) e o mesmo movimento pelo holandês Anner Bylsma. São interpretações radicalmente diferentes da obra sacrossanta do violoncelo. A visão de Casals (1876-1973) é romântica, inserida na tradição musical do século XIX na qual Casals se formou. Já a de Bylsma (1934-) é barroca, uma tentativa de resgatar o modo como o cello soava, de como eram os andamentos, de qual teria sido o som imaginado há 300 anos por Johann Sebastian Bach (1685-1750) ao compor essas maravilhas. 
Em 2008, descobri um CD gravado no Brasil com as três primeiras Suítes, desta vez gravadas por Dimos Gouraroulis, ou ΔΗΜΟΣ ΓΚΟΥΝΤΑΡΟΥΛΗΣ, como se escreve no seu grego natal. Dimos nasceu na cidade de Larissa, iniciou as aulas de violoncelo no Conservatório de Tessalonika, formou-se pelo Conservatório de Paris e mudou-se para o Brasil faz uma década. Hoje, aos 40 anos, Gouraroulis fala um português com sotaque quase imperceptível. Simpático e bonachão, ele freqüenta a mesma padaria que eu no bairro paulistano do alto de pinheiros (não sei como é no resto do Brasil, mas os paulistanos gostam de tomar café na padaria, principalmente nas manhãs de domingo).
Esperem. Estou atropelando os fatos. Para poder reconhecer o Dimos com os três filhos na padaria, primeiro foi preciso conhecê-lo pessoalmente. Foi o que fiz em abril de 2010, ao entrevistá-lo para escrever uma resenha do CD “O tenor perdido – O violoncello piccolo de 4 cordas” (Selo Sesc, R$ 25), um álbum inacreditavelmente belo de música barroca composta para violoncelo tenor e cravo, a cargo do ótimo cravista brasileiro Nicolau Figueiredo (leia “O piccolo notável”).  
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Passamos algumas horas conversando sobre música em sua casa. Ele tem vários violoncelos antigos, e durante a conversa, tangia o arco tocando a esmo trechos de várias obras. Entre elas, volta e meia Dimos voltava a alguma das Suítes de Bach. Lembro-me dele ter tocado uma parte do prelúdio da suíte número 1 com um cello alemão, e no violoncelo tenor, ou piccolo, trechos da 5ª suíte, se não me engano. Eu perdi o fôlego. Como eu adorava aquelas peças há muito e sabia da sua imensa dificuldade técnica (leia “Bach, o chapeleiro-maluco”), fiquei besta de ver o Dimos - sem partitura - interpretar de modo muito belo aquelas seqüências de frases musicais compostas por Bach. Senti-me um privilegiado.

O violoncelista grego Dimos Goudaroulis, radicado em São Paulo (Foto: Reprodução)
 
Perguntei qual intérprete das Suítes ele preferia. “Anner Bylsma”, disse taxativo. Fazia todo o sentido. Bylsma é um expoente do movimento de resgate da música antiga. Dimos é seu discípulo. A começar pelo modo como ele toca o cello. Desde o século XIX, o instrumento tem na parte inferior uma vara de metal chamada espigão, com a qual o instrumentista o apóia no chão. No século XVIII tal espigão não existia. Dimos toca sem espigão, como se fazia há 300 anos. Ele apóia o cello suavemente no chão e o envolve entra as pernas, num abraço afetuoso, um abraço barroco.
Contei a Dimos que tinha comprado o seu CD com as três primeiras Suítes. Perguntei quando e se ele tinha planos de gravar outro, com as Suítes 4, 5 e 6. “Já foi gravado e lançado na Europa. No Brasil, será lançado até o fim do ano.” Não foi, ficou para 2011. É o álbum duplo “Seis Suítes a violoncello solo” (Tratore, R$ 41,90).
“As Suítes de Bach têm me acompanhado durante toda a minha vida de músico”, diz Dimos, que começou a estudá-las aos 13 anos. “São o meu pão de cada dia, o texto sagrado que nunca parei de tentar entender, explicar, decodificar, interpretar...” Para fazer o registro deste que é o cânone do cello, Dimos não partiu “de uma edição moderna qualquer”. Fiel aos princípios da música antiga, usou os manuscritos de Anna Magdalena Bach, segunda esposa do compositor, musicista e sua copista. 
O álbum duplo “Seis Suítes a violoncello solo”, de Bach, por Goudaroulis (Foto: Reprodução)
 
 Segundo Dimos, como as partituras originais de Bach se perderam, as cópias manuscritas feitas por Anna Magdalena são as mais fiéis e valiosas das seis Suítes. “O manuscrito da Anna Magdalena parece à primeira vista difícil de ler e impreciso. Mas é mais importante que temos, a primeira fonte - é um documento maravilhoso e muito preciso, quando visto com mais atenção e carinho.”
“Existe grande polêmica em torno do manuscrito da Anna Magdalena”, afirma Dimos. “Muitos se inspiram nele, mas ninguém acredita na extrema variedade de articulações e arcadas. Com a desculpa de que o manuscrito seria impreciso e incoerente, os violoncelistas, mesmo os modernos e bem informados sobre o estilo de interpretação da época, não conseguem admitir as arcadas aparentemente anárquicas do manuscrito. Consideram que elas vão contra a regra e são praticamente inexecutáveis... Assim, partem para interpretações e edições pessoais as mais variadas, e se distanciam cada vez mais do original,” diz. “Minha opção é a de tocar as Suítes assim, o mais fielmente possível ao original.” 

Fonte:

 Peter Moon Repórter especial de ÉPOCA vive No mundo da Lua, um espaço onde dá vazão ao seu fascínio por aventura, cultura, ciência e tecnologia.  petermoon@edglobo.com.br (Foto: ÉPOCA)

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